A regeneração pode ser considerada de forma
mais ampla, incluindo a chamada eficaz, a conversão e a santificação; ou de forma
mais restrita, designando o primeiro princípio de graça infundido na alma. [Isto] faz
da alma um objeto preparado para a chamada eficaz, um vaso apropriado à
conversão, sendo também a fonte daquela santidade que é gradualmente desenvolvida
na santificação e aperfeiçoada no céu. No que diz respeito à regeneração, os
seguintes fatos devem ser examinados com atenção: o que é a regeneração ou... a
sua natureza, que é tão misteriosa, desconhecida e inexplicável para um homem
natural, como o foi para Nicodemos, embora ele fosse um mestre em Israel. Nós a
compreenderemos melhor observando as expressões e termos pelos quais a
regeneração é apresentada:
1. Nascer de novo — isto é o que a
regeneração significa (veja Jo 3.3, 7; 1 Pe 1.3, 23). Esta expressão supõe um
nascimento anterior, um primeiro nascimento, em relação ao qual a regeneração é
o segundo. Se observarmos a diferença entre os dois nascimentos, os conceitos
ficarão mais claros. Esses nascimentos são opostos entre si: o primeiro vem de
pais pecadores e acontece à imagem deles; o segundo vem de
Deus e acontece à imagem dEle. O primeiro é de
semente corruptível, o segundo, de incorruptível. O primeiro acontece em
pecado, o segundo, em santidade e justiça. Por meio do primeiro nascimento, os
homens são corrompidos e depravados; pelo segundo, eles se tornam consagrados e
começam a ser santos. O primeiro nascimento é carnal; o segundo é espiritual,
transformando os que passam por ele em homens espirituais. Por meio do primeiro
nascimento, os homens são loucos e insensatos; nascem como crias de asnos
monteses. Por meio do segundo nascimento, eles se tornam instruídos e sábios
para a salvação. Por meio do primeiro nascimento, eles são escravos do pecado e
das paixões carnais: sua condição de escravo é inata. Por meio do segundo
nascimento, eles se tornam os libertos de Cristo. Por meio do primeiro
nascimento, eles são transgressores e seguem um caminho de pecado, até que são
interrompidos pela graça. No segundo nascimento, eles param de cometer pecados,
isto é, param de seguir o caminho de pecado, passando a viver em santidade.
Sim, aquele que é nascido de Deus não vive em pecado. Por meio do
primeiro nascimento, os homens são filhos da ira e estão sob o desprazer
divino; no segundo nascimento, eles se tornam objetos do amor de Deus, sendo a
regeneração o fruto e o efeito desse amor...
2. Nascer do alto — assim poderia ser
traduzida a expressão de João 3.3, 7. O apóstolo Tiago disse, de um modo geral,
que toda boa dádiva e todo dom perfeito vêm do alto; e a regeneração, sendo
esse tipo de dádiva, deve vir do alto... “Pois, segundo o seu querer, ele nos
gerou pela palavra da verdade” (Tg 1.17-18). O autor desse nascimento é do
alto; e os que nasceram de novo nasceram de Deus Pai, que está no céu. A graça
concedida na regeneração vem de cima (Jo 3.27). A verdade no íntimo, a
sabedoria no espírito ou a graça de Deus no coração, produzida na regeneração,
é a sabedoria que vem do alto (Tg 3.17). Assim são os nascidos de novo, pois
eles são nascidos do alto, têm excelente nascimento, são participantes da
vocação soberana e celestial de Deus, em Cristo Jesus, e certamente a possuirão
(1 Pe 1.3-4; Hb 3.1; Fp 3.14).
3. É comum a regeneração ser expressa por novo nascimento; e com grande
propriedade, visto que o lavar regenerador e renovador do Espírito Santo estão
juntos, como que significando a mesma coisa. A regeneração produz o que as
Escrituras chamam de nova criatura e novo homem, e os nascidos de
novo são chamados de crianças novamente nascidas (Tt 3.5; 2 Co 5.17;
Ef 4.24; 1 Pe 2.2). É um novo homem em oposição ao velho ou ao princípio da
natureza corrupta, que é tão antigo quanto o homem. Mas o princípio da graça
infundido na regeneração é novo. É algo novo, inserido no
coração; é algo que antes nunca esteve na natureza humana, nem mesmo em Adão,
quando vivia em seu estado de inocência. Não é uma influência sobre os velhos
princípios da natureza, nem a elevação deles a um grau superior. Não é uma
melhoria dos velhos princípios, nem uma correção da imagem de Deus corrompida e
arruinada no homem. É uma obra totalmente nova. É chamada de nova
criatura; é uma obra realizada pelo poder onipotente, uma nova criatura, um
novo homem constituído de várias partes, todas elas novas. Nessa nova criatura,
existem um coração novo, um espírito novo, uma mente nova, para conhecer e
entender coisas que antes não podiam ser conhecidas nem entendidas — um novo
coração para conhecer a Deus, não como o Deus da natureza e da providência, e
sim como o Deus da graça, Deus em Cristo, Deus em um Mediador, o amor de Deus
nEle, a aliança da graça e as bênçãos dessa aliança estabelecida nEle. [É um
novo coração para conhecer] a Cristo e a plenitude da graça nEle, o perdão do
pecado por meio de seu sangue, a justificação por meio de sua justiça, a
redenção por meio do seu sacrifício, aceitação diante de Deus por meio dEle e
completa salvação por intermédio dEle — coisas sobre as quais Adão nada sabia
no Paraíso.
Neste novo coração, há novos desejos por esses
objetos, para conhecer mais sobre eles; há novas afeições colocadas sobre eles,
novos deleites neles e novas alegrias que surgem deles (Ez 36.26; 1 Jo 5.20; 1
Co 2.9). Este novo homem enxerga com novos olhos. Deus não concede
a algumas pessoas olhos para ver coisas divinas e espirituais, mas Ele os
concede para os nascidos de novo. Eles têm olhos que vêem, feitos pelo Senhor
(Dt 29.4; Pv 20.12), com os quais eles vêem seu estado de perdição, sua
condição natural, a excessiva corrupção do pecado, sua incapacidade de se
redimir por meio do que possam fazer. [Vêem] a insuficiência de sua justiça,
sua incapacidade de fazer boas obras e a falta de poder para ajudarem a si
mesmos a livrarem-se do estado e da condição em que estão. [Vêem sua
necessidade] do sangue, da justiça e do sacrifício de Cristo, e da salvação por
intermédio de Cristo. Eles têm os olhos da fé com os quais contemplam as
glórias da pessoa de Cristo, a plenitude de sua graça, a excelência de sua
justiça, a virtude de seu sangue e sacrifício, o benefício e a perfeição de sua
salvação. Neste aspecto, a regeneração não é outra coisa senão luz espiritual
no entendimento.
Além disso, o novo homem tem novos ouvidos. Nem todos têm
ouvidos para ouvir. Alguns têm e os receberam do Senhor; e benditos são eles
(Ap 2.11; Dt 29.4; Pv 20.12; Mt 13.16-17). Ouvem a Palavra de um modo como
nunca ouviram antes. Eles a entendem e passam a amá-la; por meio dela,
distinguem a voz de Cristo da voz de um estranho, de modo que sentem-na agir
neles com eficácia e tornar-se o poder de Deus para a salvação deles. Conhecem
o jubiloso som e regozijam-se em ouvi-lo!
O novo homem também tem novas mãos com as quais
pode agir: a mão de fé para receber a Cristo como Salvador e Redentor, para
apropriar-se dEle para a vida e a salvação, para recebê-Lo, para apegar-se a
Ele e não deixá-Lo ir embora. [Eles têm mãos] para tocá-Lo, a Palavra da vida,
e receber dEle graça sobre graça. Têm mãos com as quais podem servir motivados
por princípios melhores, a fim de atingir objetivos melhores do que os
anteriores.
Eles têm novos pés, com os quais correm
para Cristo, a Cidade de refúgio; andam pela fé, prosseguem nEle, assim como O
receberam; atravessam com alegria os caminhos de suas ordenanças, seguem-No com
empenho e continuam a conhecê-Lo. Têm novos pés com os quais podem correr e não
se fatigar, andar e não desfalecer.
4. A regeneração é expressa por ser vivificado. Assim como há, na
criação natural, um momento em que a vida passa a existir, na regeneração
acontece o mesmo. “Ele vos deu vida” (Ef 2.1). Antes da regeneração, os homens
estão mortos, embora vivam; ainda que estejam fisicamente vivos, estão
moralmente mortos; estão mortos em um sentido moral para as coisas espirituais,
em todas as forças e capacidades de sua alma. Não as conhecem, não têm afeição
por elas, amor por elas ou poder de realizá-las, à semelhança de um homem morto
em relação às coisas naturais. Entretanto, na regeneração um princípio de vida
espiritual é infundido no homem; é um tempo em que o Senhor lhes transmite
vida e a produz neles. Cristo é a ressurreição e a vida neles. [Ele] os ressuscita da morte
do pecado para uma vida de graça. O espírito da vida de Cristo entra neles.
A regeneração é uma passagem da morte para a vida.
É um princípio de vida espiritual implantado no coração, em conseqüência do
qual um homem inspira um senso espiritual. Onde há fôlego, há vida. Deus soprou
em Adão o fôlego de vida, e este se tornou uma alma vivente, uma pessoa viva
que, em resposta, respirou. Assim, o Espírito de Deus sopra em ossos secos, e
eles vivem e passam a respirar. A oração é a respiração espiritual de um homem
regenerado. “Ele está orando” (At 9.11) é algo observado sobre Saulo após sua
regeneração. Um pouco antes ele respirava ameaças e morte contra os discípulos
de Cristo. Um homem regenerado respira oração a Deus e suspira por Ele, por
conhecê-Lo mais em Cristo, por ter comunhão com Ele, por manifestações de seu
amor e, em especial, pela benevolente graça e misericórdia. Às vezes, estas
respirações e desejos são expressos apenas por suspiros e gemidos, mas ainda
são sinais de vida. Se um homem suspira, é claro que está vivo.
O homem regenerado deseja intensamente o alimento
espiritual; e isso demonstra que ele foi vivificado. Logo que uma criança
nasce, ela procura o seio materno em busca de leite. Assim, os recém-nascidos
espirituais desejam o genuíno leite da Palavra, por meio do qual eles podem
crescer. Seus sentidos espirituais são exercitados em assuntos espirituais. Têm
o que corresponde aos sensos da vida natural: o ver, o ouvir e, como já observamos,
o sentir. Eles sentem o fardo do pecado na consciência e as obras do Espírito
de Deus em seu coração; e confiam em Cristo, a Palavra da vida — isso deixa
evidente o fato de que estão vivos: um morto nada sente. Têm uma inclinação
espiritual, um deleite nas coisas espirituais; a Palavra de Cristo lhes é mais
doce ao paladar do que o mel ou o favo de mel... Eles provam que o Senhor é
gracioso e convidam outros a provar e ver também quão bom Ele é. Eles se
deleitam com as coisas de Deus e não dos homens. Cristo e sua graça lhes são
agradáveis... Estes sensos espirituais e o exercício deles... mostram que estão
vivos, que nasceram de novo. Essas pessoas levam uma vida de fé; vivem por fé —
não a fé em si mesma, mas em Cristo, o objeto da fé. Crescem em Cristo, a Cabeça deles, de
quem recebem sustento e assim crescem no crescimento que vem de Deus; e isto é
uma evidência de vida. Resumindo, eles vivem uma vida nova, diferente da que
tinham antes; não vivem mais para si mesmos ou para as paixões dos homens, e
sim para Deus e para Cristo, que morreu e ressuscitou por eles. Andam em
novidade de vida.
5. A regeneração é demonstrada pela formação de Cristo
na pessoa convertida(Gl 4.19). A imagem dEle é gravada na regeneração; não a imagem do
primeiro Adão, e sim a do segundo Adão. Pois o
novo homem é feito segundo a imagem dAquele que o criou de novo, é a imagem de
Cristo. Os eleitos de Deus são predestinados a serem conformados a esta imagem;
e isso acontece na regeneração (Rm 8.29; Cl 3.10). As graças de Cristo — fé,
esperança e amor — são produzidas no coração da pessoa regenerada e logo se
tornam visíveis. Sim, o próprio Cristo vive neles. O apóstolo Paulo disse: “Não
sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse viver que, agora, tenho na
carne, vivo pela fé” (Gl 2.20). Cristo e o crente vivem mutuamente um no outro.
6. A regeneração é explicada como o ser co-participante da
natureza divina (2 Pe 1.4). Isto não significa que o nascido de novo se torna
participante da natureza essencial de Deus: uma criatura não pode participar da
essência divina, e esta não pode ser comunicada à criatura. Isto seria deificar
os homens. Muitas das perfeições divinas são totalmente
incomunicáveis, como a eternidade, a imensidade, etc. Os nascidos de novo
também não participam danatureza divina da mesma maneira como
Cristo participa, pela união pessoal e hipostática das duas naturezas nEle, a
união em que a plenitude da divindade habita corporalmente nEle. Mas a
regeneração produz na alma uma semelhança com a natureza divina em
espiritualidade, santidade, bondade, benevolência, etc.; por isso, a
regeneração também recebe essa designação.
Fonte: Editora Fiel
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