Calvino e a Vida Espiritual
“Somos de Deus. Portanto, vivamos e morramos para
ele. Somos de Deus: permitamos que a sua sabedoria e a sua vontade governem
todas as nossas ações. Somos de Deus, por conseguinte, todas as partes de nossa
vida devem se empenhar por ele, como nosso único alvo lícito (Rm 14.8; 1 Co
6.19). Oh! quanto benefício tem desfrutado o homem que, havendo sido ensinado
que não pertence a si mesmo, abandonou o domínio e o governo de sua própria
razão, para sujeitá-la a Deus!” (Institutas, 3.7.1).
A página de abertura de cada edição das Institutas da
Religião Cristã estampa as palavras que são o tema que consolidou a vida de João
Calvino: “A sabedoria verdadeira e correta consiste de duas partes: o
conhecimento de Deus e o de nós mesmos”. Ele escreveu essas palavras em 1536,
e, em todos os anos seguintes, a ênfase permaneceu a mesma. Calvino se julgava
um pecador que devia a Deus tudo o que era. Fora Deus quem subjugara sua mente
ao conhecimento de Cristo. A piedade resgatada na Reforma tem sido, às vezes,
caricaturada como uma vida de obediência fria e austera a Deus. Mas a
caricatura se fundamenta na ignorância quanto à relação entre o amor a Deus e a
gratidão de corações que crêem. Glorificar este Deus gracioso e não
desagradar-Lhe são, necessariamente, os desejos daqueles que Ele redime.
No entanto, há perigos para aqueles que reverenciam
a memória de Calvino. Mencionarei dois dos perigos que se me apresentam:
Primeiro, em nossos círculos, a piedade e a
santidade não são as características da crença calvinista na proporção que
deveriam ser. Cremos que a revelação divina nos foi dada em proposições e
palavras; e temos de lutar por isso. Mas a verdade é crida corretamente à
medida que a incorporamos à vida. O evangelho propagou-se pela Europa no século
XVI por meio do testemunho de pessoas transformadas.
Com muita freqüência, as crenças associadas ao nome
de Calvino têm sido identificadas com o salão de preleções e a erudição. Já
tive a oportunidade de ouvir preleções sobre “os cinco pontos do calvinismo”
apresentadas como se estivéssemos em uma palestra sobre Química.
Não é somente por meio de argumentação ou de ensino
que o cenário atual pode ser revertido. “O reino de Deus consiste não em
palavra, mas em poder” (1 Co 4.20), pois somente o Espírito Santo é a fonte do
testemunho que não consiste apenas em palavras.
Segundo, nosso exemplo precisa ser o melhor argumento
de que a crença na soberania de Deus não enfraquece a pregação evangelística.
Há exceções proeminentes, mas, ao examinarmos amplamente o cenário cristão, há
algumas explicações para a idéia de que a crença calvinista obstrui a paixão
evangelística. Com essa percepção, poderíamos nos enganar imaginando que
estamos livres de culpa. Temos achado mais fácil ser “mestres” e “defensores”
da verdade do que evangelistas dispostos a morrer para que homens sejam
convertidos. Às vezes, podemos dar a outros cristãos a impressão de que
julgamos o calvinismo como coexistente com o cristianismo e de que toda a
mensagem do evangelho pode ser encaixada nos cinco pontos do calvinismo. Esses
pontos não devem ser depreciados, Deus, porém, é muito mais incompreensível do
que nosso entendimento, e há outras verdades a serem pregadas que estão além de
nossa capacidade de harmonizá-las.
Neste ponto, Calvino nos adverte. Ao falar sobre os
convites indiscriminados de Cristo, em João 5, ele observou: “Cristo estava
pronto a se dar a eles, se estivessem dispostos a crer”. Jesus pôde dizer que
“não se perderia nenhum dos que o Pai desejava fossem salvos” e, apesar disso,
advertir seus ouvintes a que não deixassem passar a oportunidade de salvação.
Onde a verdade calvinista é apresentada como se não
houvesse em Deus nenhum amor pelos pecadores como pecadores — que Ele tem
consideração apenas pelos eleitos —, não devemos nos admirar de que ali a
pregação evangelística seja hesitante. O pregador tem de ser possuído por um
amor para com todos, pois, do contrário, não apresentará o Salvador em cujo
nome ele fala. Os homens de crenças calvinistas que se destacaram como
evangelistas e missionários sempre foram exemplo disso.
Traduzido por: Wellington Ferreira
Do prefácio do livro: John Calvin – A heart for
devotion, doctrine & doxology.
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