Antes de abordarmos o tema deste versículo,
desejamos fazer algumas considerações sobre os seus termos. “Se alguém” — o
termo utilizado refere-se a todos os que desejam unir-se ao grupo dos
seguidores de Cristo e alistar-se sob a bandeira dEle. “Se alguém quer” — o
grego é muito enfático, significando não somente a anuência da vontade, mas
também o propósito completo do coração, uma resolução determinada. “Vir após
mim” — como um servo sujeito a seu Senhor, um aluno, ao seu Mestre, um soldado,
ao seu Capitão. “Negue” — o vocábulo grego significa negue-se
completamente. Negue-se a si mesmo — a sua natureza pecaminosa e corrupta. “Tome” —
não quer dizer leve ou suporte passivamente, e sim assuma voluntariamente,
adote ativamente. “A sua cruz” — que é desprezada pelo mundo, odiada pela
carne, mas, apesar disso, é a marca distintiva de um verdadeiro crente. “E
siga-me” — viva como Cristo viveu, para a glória de Deus.
O contexto imediato é ainda mais solene e
impressionante. O Senhor Jesus acabara de anunciar aos seus apóstolos, pela
primeira vez, a aproximação de sua morte de humilhação (v. 21). Pedro,
admirado, disse-Lhe: “Tem compaixão de ti, Senhor” (v. 22). Estas palavras
expressaram a política da mentalidade carnal. O caminho do mundo é a satisfação
e a preservação do “eu”. “Poupa-te a ti mesmo” é a síntese da filosofia do
mundo. Mas a doutrina de Cristo não é “salva-te a ti mesmo”, e sim sacrifica-te
a ti mesmo. Cristo discerniu no conselho de Pedro uma tentação da parte de
Satanás (v. 23) e, imediatamente, a repeliu. Jesus disse a Pedro não somente
que Ele tinha de ir a Jerusalém e morrer ali, mas também que todos os que
desejassem tornar-se seguidores dEle tinham de tomar a sua cruz (v. 24).
Existia um imperativo tanto em um caso como no outro. Como instrumento de
mediação, a cruz de Cristo permanece única; todavia, como um elemento de
experiência, ela tem de ser compartilhada por todos os que entram na vida.
O que é um “cristão”? Alguém que possui membresia
em uma igreja na terra? Não. Alguém que afirma um credo ortodoxo? Não. Alguém
que adota certo modo de conduta? Não. Então, o que é um cristão? É alguém que
renunciou o “eu” e recebeu a Cristo Jesus como Senhor (Cl 2.6). O verdadeiro
cristão é alguém que tomou sobre si o jugo de Cristo e aprende dEle, que é
“manso e humilde de coração” (Mt 11.29). O verdadeiro cristão é alguém que foi
chamado à comunhão do Filho de Deus, “Jesus Cristo, nosso Senhor” (1 Co 1.9):
comunhão em sua obediência e sofrimento agora; em sua recompensa e glória no
futuro eterno. Não existe tal coisa como o pertencer a Cristo e viver para
satisfazer o “eu”. Não se engane nesse ponto. “Qualquer que não tomar a sua
cruz e vier após mim não pode ser meu discípulo” (Lc 14.27) — disse o Senhor
Jesus. E declarou novamente: “Aquele que [em vez de negar-se a si mesmo] me
negar diante dos homens [e não para os homens — é a conduta, o andar que está
em foco nestas palavras], também eu o negarei diante de meu Pai, que está nos
céus” (Mt 10.33).
A vida cristã tem início com um ato de
auto-renúncia, sendo continuada por automortificação (Rm 8.13). A primeira
pergunta de Saulo de Tarso, quando Cristo o deteve, foi esta: “Que farei,
Senhor?” (At 22.10.) A vida cristã é comparada a uma corrida, e o atleta é
chamado a desembaraçar-se “de todo peso e do pecado que tenazmente... assedia”
(Hb 12.1) — ou seja, o pecado que está no amor ao “eu”, o desejo e a resolução
de seguir nosso próprio caminho (Is 53.6). O grande e único alvo, objetivo e
tarefa colocados diante do cristão é seguir a Cristo: seguir o exemplo que Ele
nos deixou (1 Pe 2.21); e Ele não agradou a Si mesmo (Rm 15.3). Existem
dificuldades no caminho, obstáculos na jornada, dos quais o principal é o “eu”.
Portanto, ele tem de ser “negado”. Este é o primeiro passo em direção a seguir
a Cristo.
O que significa negar completamente a si mesmo?
Primeiramente, significa o completo repúdio de sua própria bondade: cessar de
confiar em quaisquer de nossas obras para recomendar-nos a Deus. Significa uma
aceitação irrestrita do veredicto divino de que todos os nossos melhores feitos
são “como trapo da imundícia” (Is 64.6). Foi neste ponto que Israel falhou,
“porquanto, desconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer a sua
própria, não se sujeitaram à que vem de Deus” (Rm 10.3). Esta afirmativa deve ser
contrastada com a declaração de Paulo: “E ser achado nele, não tendo justiça
própria” (Fp 3.9).
Negar completamente a si mesmo significa renunciar
de todo a sua própria sabedoria. Ninguém pode entrar no reino de Deus, se não
se tornar como uma “criança” (Mt 18.3). “Ai dos que são sábios a seus próprios
olhos e prudentes em seu próprio conceito!” (Is 5.21.) “Inculcando-se por
sábios, tornaram-se loucos” (Rm 1.22). Quando o Espírito Santo aplica o
evangelho com poder em uma alma, Ele o faz “para destruir fortalezas,
anulando... sofismas e toda altivez que se levante contra o conhecimento de
Deus, e levando cativo todo pensamento à obediência de Cristo” (2 Co 10.4,5).
Um lema sábio que todo cristão deve adotar é: “Não te estribes no teu próprio
entendimento” (Pv 3.5).
Negar completamente a si mesmo significa renunciar
suas próprias forças: não ter qualquer confiança na carne (Fp 3.3). Significa
prostrar o coração à afirmativa de Cristo: “Sem mim nada podeis fazer” (Jo
15.5). Foi neste ponto que Pedro falhou (Mt 26.33). “A soberba precede a ruína,
e a altivez do espírito, a queda” (Pv 16.18). Quão necessário é que estejamos
sempre atentos! “Aquele, pois, que pensa estar em pé veja que não caia” (1 Co
10.12). O segredo do vigor espiritual se encontra em reconhecermos nossa
fraqueza pessoal (ver Is 40.29; 2 Co 12.9). Sejamos, pois, fortes “na graça que
está em Cristo Jesus” (2 Tm 2.1).
Negar completamente a si mesmo significa renunciar
de todo a sua própria vontade. A linguagem de uma pessoa não-salva é: “Não
queremos que este reine sobre nós” (Lc 19.14). A atitude de um verdadeiro
cristão é: “Para mim, o viver é Cristo” (Fp 1.21) — honrar, agradar e servir a
Ele. Renunciar a nossa própria vontade significa dar atenção à exortação de
Filipenses 2.5: “Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo
Jesus”; e isto é definido nos versículos seguintes como auto-renúncia.
Renunciar a nossa própria vontade é o reconhecimento prático de que não somos
de nós mesmos e de que fomos “comprados por preço” (1 Co 6.20); é dizermos
juntamente com Cristo:
“Não seja o que eu quero, e sim o que tu queres”
(Mc 14.36).
Negar completamente a si mesmo significa renunciar
as suas próprias concupiscências ou desejos carnais. “O ego de um homem é um
pacote de ídolos” (Thomas Manton), e esses ídolos têm de ser repudiados. Os
não-crentes amam a si mesmos (2 Tm 3.2 – ARC). Todavia, alguém que foi
regenerado pelo Espírito diz, assim como Jó: “Sou indigno... Por isso, me
abomino” (40.4; 42.6). A respeito dos não-crentes, a Bíblia afirma: “Todos eles
buscam o que é seu próprio, não o que é de Cristo Jesus” (Fp 2.21). Mas, a
respeito dos santos de Deus, está escrito: “Eles... mesmo em face da morte, não
amaram a própria vida” (Ap 12.11). A graça de Deus está nos educando “para que,
renegadas a impiedade e as paixões mundanas, vivamos, no presente século,
sensata, justa e piedosamente” (Tt 2.12).
Este negar a si mesmo que Cristo exige dos seus
seguidores é total. Não há qualquer restrição, quaisquer exceções — “Nada
disponhais para a carne no tocante às suas concupiscências” (Rm 13.14). Este
negar a si mesmo tem de ser contínuo e não ocasional — “Se alguém quer vir após
mim, a si mesmo se negue, dia a dia tome a sua cruz e siga-me” (Lc 9.23). Tem
de ser espontâneo, não forçado; realizado com alegria e não com relutância —
“Tudo quanto fizerdes, fazei-o de todo o coração, como para o Senhor e não para
homens” (Cl 3.23). Oh! quão perversamente tem sido abaixado o padrão que Deus
colocou diante de nós! Como este padrão condena a negligência, a satisfação
carnal e a vida mundana de muitos que se declaram (inutilmente) “cristãos”!
“Tome a sua cruz.” Isto se refere à cruz não como
um objeto de fé, e sim como uma experiência na alma. Os benefícios legais do
Calvário são recebidos por meio de crer, quando a culpa do pecado é cancelada,
mas as virtudes experimentais da cruz de Cristo são desfrutadas apenas quando
somos conformados, de modo prático, “com ele na sua morte” (Fp 3.10). É somente
quando aplicamos a cruz, diariamente, ao nosso viver e regulamos nosso
comportamento pelos princípios dela, que a cruz se torna eficaz sobre o poder
do pecado que habita em nós. Não pode haver ressurreição onde não há morte; não
pode haver um andar prático, “em novidade de vida”, enquanto não levamos “no
corpo o morrer de Jesus” (2 Co 4.10). A cruz é a insígnia, a evidência do
discipulado cristão. É a cruz de Cristo e não o credo dEle que faz a distinção
entre um verdadeiro seguidor de Cristo e os religiosos mundanos.
Ora, em o Novo Testamento a “cruz” representa
realidades definidas. Primeiramente, a cruz expressa o ódio do mundo. O Filho
de Deus não veio para julgar, e sim para salvar; não veio para castigar, e sim
para redimir. Ele veio ao mundo “cheio de graça e de verdade”. O Filho de Deus
sempre estava à disposição dos outros: ministrando aos necessitados,
alimentando os famintos, curando os enfermos, libertando os possessos de
espíritos malignos, ressuscitando mortos. Ele era cheio de compaixão — manso
como um cordeiro, totalmente sem pecado. O Filho de Deus trouxe consigo
boas-novas de grande alegria. Ele buscou os perdidos, pregou aos pobres, mas
não desprezou os ricos; e perdoou pecadores. De que modo Cristo foi recebido?
Que boas-vindas os homens Lhe ofereceram? Os homens O desprezaram e rejeitaram
(Is 53.3). Ele disse: “Odiaram-me sem motivo” (Jo 15.25). Os homens sentiram
sede do sangue de Jesus. Nenhuma morte comum lhes satisfaria. Exigiram que
Jesus fosse crucificado. Por conseguinte, a cruz foi a manifestação do ódio
inveterado do mundo para com o Cristo de Deus.
O mundo não se alterou, assim como o etíope ainda
não mudou a sua pele e o leopardo, as suas manchas. O mundo e Cristo ainda
estão em antagonismo. Por isso, a Bíblia afirma: “Aquele, pois, que quiser ser
amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus” (Tg 4.4). É impossível andarmos
com Cristo e gozarmos de comunhão com Ele, enquanto não tivermos nos separado
do mundo. Andar com Cristo envolve necessariamente compartilhar de sua
humilhação — “Saiamos, pois, a ele, fora do arraial, levando o seu vitupério”
(Hb 13.13). Foi isso o que Moisés fez (ver Hb 11.24-26). Quanto mais
intimamente eu estiver andando com Cristo, tanto mais incorretamente serei
compreendido (1 Jo 3.2), tanto mais serei ridicularizado (Jó 12.4) e odiado
pelo mundo (Jo 15.19). Não cometa erro neste ponto: é totalmente impossível ser
amigo do mundo e andar com Cristo. Portanto, tomar a cruz significa que
eu desprezo voluntariamente a amizade do mundo, recusando conformar-me com ele
(Rm 12.2). Que me importa a carranca do mundo, se estou desfrutando do sorriso
do Salvador?
Tomar a cruz significa uma vida
de sujeição voluntária a Deus. No que concerne à atitude de homens ímpios, a
morte de Cristo foi um assassinato. Mas, no que se refere à atitude do próprio
Senhor Jesus, a sua morte foi um sacrifício espontâneo, uma oferta de Si mesmo
a Deus. Foi também um ato de obediência a Deus. Ele mesmo disse: “Ninguém a
tira de mim [a vida dEle]; pelo contrário, eu espontaneamente a dou. Tenho
autoridade para a entregar e também para reavê-la” (Jo 10.18). E por que Ele a
entregou espontaneamente? As próximas palavras do Senhor Jesus nos dizem: “Este
mandato recebi de meu Pai”. A cruz foi a suprema demonstração da obediência de
Cristo. Nisto, Ele é nosso exemplo. Citamos novamente Filipenses 2.5: “Tende em
vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus”. Nas palavras
seguintes, vemos o Amado do Pai assumindo a forma de um servo e “tornando-se
obediente até à morte e morte de cruz”.
Ora, a obediência de Cristo tem de ser a obediência
do cristão — voluntária, alegre, irrestrita, contínua. Se esta obediência
envolve vergonha e sofrimento, menosprezo e perdas, não devemos vacilar; pelo
contrário, temos de fazer o nosso “rosto como um seixo” (Is 50.7). A cruz é
mais do que um objeto da fé do cristão, é a insígnia do discipulado, o
princípio pelo qual a vida do crente deve ser regulada. A cruz significa entrega e
dedicação a Deus — “Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis
o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso
culto racional” (Rm 12.1).
A cruz representa sofrimento e sacrifício vicários.
Cristo entregou sua própria vida em favor de outros; e os seguidores dEle são
chamados a fazerem espontaneamente o mesmo — “Devemos dar nossa vida pelos
irmãos” (1 Jo 3.16). Esta é a lógica inevitável do Calvário. Somos chamados a
seguir o exemplo de Cristo, à comunhão de seus sofrimentos, a sermos
cooperadores em sua obra. Assim como Cristo “a si mesmo se esvaziou” (Fp 2.7),
assim também devemos nos esvaziar. Cristo “não veio para ser servido, mas para
servir” (Mt 20.28); temos de agir da mesma maneira. Assim como Cristo “não se
agradou a si mesmo” (Rm 15.3), assim também não devemos agradar a nós mesmos.
Como o Senhor Jesus sempre pensou nos outros, assim devemos nos lembrar “dos
encarcerados, como se presos com eles; dos que sofrem maus tratos”, como se
fôssemos nós mesmos os maltratados (Hb 13.3).
“Quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á; e quem
perder a vida por minha causa achá-la-á” (Mt 16.25). Palavras quase idênticas a
estas se encontram também em Mateus 10. 39, Marcos 8.35, Lucas 9.24; 17.33,
João 12.25. Esta repetição certamente é um argumento em favor da profunda
importância de prestarmos atenção e atendermos às palavras de Cristo. Ele
morreu para que vivêssemos (Jo 12.24); devemos agir de modo semelhante (Jo
12.25). Assim como Paulo, devemos ser capazes de afirmar: “Em nada considero a
vida preciosa para mim mesmo” (At 20.24). A “vida” de satisfação do “eu” neste
mundo é perdida na eternidade. A vida que sacrifica os interesses do “eu” e se
rende a Cristo, essa vida será achada novamente e preservada em toda
eternidade.
Um jovem que concluíra a universidade e tinha
perspectivas brilhantes respondeu à chamada de Cristo para uma vida de serviço
para Ele na Índia, entre as classes mais pobres. Seus amigos exclamaram: “Que
tragédia! Uma vida desperdiçada!” Sim, foi uma vida “perdida” para este mundo,
mas “achada” no mundo por vir.
Fonte: Editora Fiel
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