“Quanto
aos demais, que se salvassem, uns, em tábuas, e outros, em destroços do navio.
E foi assim que todos se salvaram em terra” (At 27.44).
A
história maravilhosa da viagem de Paulo a Roma, com suas provações e triunfos,
é um excelente modelo das luzes e sombras que se encontram na vereda da fé ao
longo de toda a história da vida humana. A característica mais notável dessa
vereda são as passagens estreitas e difíceis que se intercalam com as mais extraordinárias
intervenções e providências de Deus.
É muito comum imaginar que o caminho da fé é
salpicado de flores e que Deus intervém na vida de seus filhos numa escala tão
grandiosa que passam a viver bem acima do nível das dificuldades. A realidade,
entretanto, é exatamente o contrário. Só encontramos provações e dificuldades
quando nos dispomos a confiar em Deus. A história da Bíblia é uma verdadeira
alternância entre aflição e triunfo no caso da cada um dos componentes da
grande nuvem de testemunhas, desde Abel até o último mártir.
Veja a história dos patriarcas. Abraão saiu
de sua terra, acreditando em Deus, para receber a promessa de uma gloriosa
herança. A primeira coisa que encontrou na terra da promessa, porém, foi fome e
desolação, compelindo-o a ir para o Egito para poder sobreviver. Sua vida
inteira foi uma sucessão de passagens estreitas e provações dolorosas, e cada
bênção precisava ser arrancada à força das garras de dificuldade e
impossibilidade natural.
Assim também foi a vida sofrida de Isaque.
Pequenas provações marcaram toda a jornada do patriarca. Seu filho preferido
veio a ser um desapontamento amargo. Os poços que cavou no deserto se tornaram
motivo de contendas enciumadas com seus vizinhos, e ele foi empurrado de um
lugar para outro de tal modo que seus passos foram marcados por nomes
associados somente à dor e tristeza.
A vida de Jacó foi um
longo cenário de provações. Quando, já idoso, mesmo depois de alcançar dias
mais felizes, ele somente podia dizer em retrospecto: “poucos
e maus foram os dias dos anos da minha vida” (Gn
47.9).
Mais do que toda a família patriarcal, José
parecia ter nascido para ser provado. A visão inicial da sua fé era brilhante
como o céu, mas logo em seguida foi escurecida por nuvens de traição e crime da
parte de seus irmãos – longos anos de exílio, ignomínia, suspeita injusta e
prolongada incerteza até que, por fim, “o ferro penetrou em sua alma”, e sua
libertação, quando chegou, foi como o livramento de Paulo do naufrágio – por
meio de incidentes providenciais, mas muito insignificantes.
Moisés, de modo
semelhante, atravessou as passagens estreitas de dificuldade e aflição amarga,
e a sua escolha foi “ser maltratado junto com o
povo de Deus” (Hb 11.25).
Davi, rei de Israel e figura gloriosa de
Cristo, mesmo após ter recebido a promessa do trono e de ser ungido rei, foi
caçado como perdiz nas montanhas de Judá e compelido a fugir de refúgio em
refúgio nas cavernas e desertos. Ele foi salvo, vez após vez, por uma margem
muito apertada.
Precisamos procurar algum outro exemplo
quando temos o próprio modelo em pessoa, cujo nome é “Varão de Dores” e cuja
vida foi aperfeiçoada “por meio de sofrimentos” (Hb 2.10)? Na infância, foi
compelido a fugir para o Egito buscando proteção da mão sangrenta de Herodes.
Ele não pôde ser poupado da agonia amarga do jardim e da cruz para completar
com êxito a nossa redenção.
Assim como ele, o
grande apóstolo Paulo foi um modelo, mais do que qualquer outra coisa, do
sofrimento que um filho de Deus pode suportar. Sua primeira experiência após a
conversão foi nesse sentido. Por conta do testemunho que deu do Senhor em
Damasco, ele foi caçado pelos judeus e obrigado a fugir para salvar sua vida.
Entretanto, não veio nenhuma carruagem celestial para carregar o santo apóstolo
no meio de relâmpagos e trovoadas para fora do alcance dos inimigos, mas foi
preciso descê-lo secretamente “num grande cesto […] por uma
janela da muralha” de Damasco (2 Co 11.33), para livrá-lo das
mãos dos judeus. Num cesto de roupas velhas, como uma trouxa de lavanderia ou
de mercadorias, o servo de Jesus Cristo foi baixado da janela para fugir
ignominiosamente do ódio de seus inimigos.
Em outras ocasiões, o encontramos abandonado
por meses em calabouços solitários. Vemo-lo contando de vigílias e jejuns, da
deserção de amigos, dos açoites brutais e vergonhosos diante de uma ralé
insultuosa e de como, mesmo depois de receber, em visão celestial, a promessa
de libertação, ficou por dias a vagar num mar tempestuoso, obrigado a vigiar
marinheiros traiçoeiros e a dizer-lhes que eram indispensáveis para a salvação
dos passageiros.
Por fim, quando
chegou a libertação, não houve nenhuma caravela celestial descendo das nuvens
para retirar o nobre prisioneiro. Nenhuma figura angélica aproximou-se, andando
por sobre as águas e silenciando os furiosos vagalhões. Não houve nenhum sinal
sobrenatural de um milagre transcendente sendo realizado em seu favor. Pelo
contrário, um dos passageiros foi compelido a segurar uma verga, outro uma
tábua flutuante; um subiu num fragmento do naufrágio, enquanto outro começou a
nadar para salvar a sua vida. Foi assim que essa história estranha e, ao mesmo
tempo, comum terminou: “… uns, em tábuas, e outros, em
destroços do navio. E foi assim que todos se salvaram em terra.”
O Padrão de Deus para Nós
Amados, esse é o padrão de Deus para nossa
própria vida. Aqui está um evangelho de ajuda para as pessoas que precisam
viver neste mundo de todo o dia, em contextos reais e normais, com milhares de
situações práticas que precisam ser solucionadas. As promessas e as
providências de Deus não nos elevam acima da esfera do senso comum ou das provações
a que todos são sujeitos; pelo contrário, é justamente por meio dessas coisas
que a fé é aperfeiçoada. Deus ama entrelaçar os fios dourados do seu amor com a
trama e a urdidura da nossa experiência cotidiana.
É extremamente edificante compreender que
temos um Deus que se faz presente nas circunstâncias e situações mais
corriqueiras da vida. Quando ele permite que milhares de dificuldades e
problemas nos cerquem de todos os lados, não significa que nos abandonou; ele
virá libertar-nos, em resposta à oração, mesmo que demore, mesmo que estejamos
em apuros, mesmo que nos sintamos tomados pela crise, na próprias garras da
destruição.
Portanto, não fiquemos desanimados se Deus
permite que o caminho seja longo e difícil e que os pés se cansem. Ele ainda está
conosco agindo de forma tão real como se fosse a coluna de nuvem e de fogo
mostrando-nos o caminho no deserto. Quando caminhou com os dois discípulos para
Emaús, Jesus agiu de maneira tão simples, tão despretensioso, tão semelhante
aos outros que não reconheceram que era ele até que os corações começaram a
arder por causa de suas palavras candentes e de seus ensinamentos
extraordinários.
Precisamos aprender a
reconhecê-lo nos lugares difíceis da caminhada, a vê-lo nas pequenas coisas.
Estejamos dispostos a enxergar a resposta às nossas orações e a realização do
nosso propósito de vida nas coisas mais corriqueiras. Assim tudo se tornará
sagrado, a vida será totalmente sublime e um dia “em
lugar do espinheiro, crescerá o cipreste, e em lugar da sarça crescerá a murta;
e será isto glória para o Senhor e memorial eterno, que jamais será extinto” (Is 55.13).
Passagens Difíceis Revelam
Nossos Fracassos
Passagens difíceis são valiosas porque nos
revelam a nós mesmos e mostram nossas insuficiências e fracassos. São os
grandes instrumentos jateadores que Deus utiliza na obra de escavação
espiritual, que precisa vir antes do trabalho mais elevado de construção de
vida e caráter. Nunca sabemos que graças e qualidades nós possuímos até que
venha a provação; a fé e a coragem que brilharam com tanto fulgor no momento de
entusiasmo e inspiração encontram ali seu verdadeiro nível de intensidade, e a
alma é obrigada a recorrer, em sua nulidade e impotência, somente a Cristo e a
encontrar nele sua vida e sustento.
Este era o propósito das provações de Jacó:
levá-lo até o fim de sua vida natural. Era também o propósito das aflições de
Jó: matar sua confiança de justiça própria. Foi a bênção que veio após a queda
de Pedro: quebrou seu orgulho e autossuficiência e o levou a apoiar-se no seu
Senhor e a encontrar força somente em Cristo.
É por isso que o
Senhor ainda o prova, a fim de convencê-lo definitivamente de que sua avaliação
da própria força é totalmente falsa e exagerada, e de levá-lo para o lugar onde
verdadeiramente será “não mais eu, mas Cristo vive
em mim” (Gl
2.20).
Passagens Difíceis Revelam os
Recursos de Deus
As passagens difíceis
também nos ajudam a conhecer os recursos de Deus. É somente em circunstâncias
difíceis que conhecemos sua total suficiência. Primeiro é preciso ficar em
silêncio para, só depois, poder observar a salvação de Deus (2 Cr 20.17).
Quando Israel parou de agir por conta própria, Deus revelou seu poder. Ele
explicou ao povo que os levou através do deserto e os expôs a situações em que
não havia suprimento natural de espécie alguma a fim de ensinar-lhes que ele
era adequado para qualquer necessidade e que “não só de pão viverá o homem,
mas de tudo o que procede da boca do Senhor viverá o homem” (Dt
8.3). Deus somente pode se tornar real para nós na medida das nossas
necessidades reais, e cada situação de dificuldade é somente um vaso para ele
encher e uma ocasião para ele se revelar em sua infinita sabedoria, poder e
graça.
O apóstolo Paulo nos
conta, portanto, que foi exposto a toda sorte de dificuldade a fim de que o
poder de Cristo pudesse repousar sobre ele de acordo com suas necessidades. Por
causa disso, ele considerava bem-vinda qualquer nova situação como mais um vaso
para Deus encher e mais uma ocasião para ele dizer: “A
minha graça te basta” (2 Co 12.9).
Amados, estamos provando e experimentando que
ele é, de fato, suficiente para todas as condições da nossa vida, gloriando-nos
em poder contar ao mundo que nosso Deus suprirá todas as nossas necessidades de
acordo com suas riquezas em glória em Cristo Jesus?
Passagens Difíceis nos Ensinam
Fé
Provação é o solo frutífero da confiança.
Dificuldades são os incentivos divinos que demandam e desenvolvem nossa
confiança na fidelidade e no amor de Deus.
É tão fácil nos apoiarmos em coisas que
podemos ver e sentir que é uma experiência totalmente nova permanecer sozinhos
e andar com o Deus invisível como Pedro andou sobre o mar. Mas é a lição que
teremos de aprender se quisermos habitar no reino eterno; a fé será nosso único
sentido, e Deus será tudo em todos. De maneira muito gentil, ele ajusta a
provação à nossa força frágil, e nos conduz adiante à medida que nos tornamos
capazes para mais e mais.
Passagens Difíceis nos Ensinam
a Orar e Amar
As passagens difíceis
nos ensinam a orar e nos constrangem a ficar bastante tempo a sós com Deus.
Elas colocaram Jacó de joelhos no vau de Jaboque (Gn 32.22-23). Ensinaram Davi
a encontrar o “esconderijo do Altíssimo” (Sl 91.1). Transformaram a vida de
Paulo numa dependência incessante da presença do Senhor, e têm inspirado e
sustentado a comunhão divina que a maioria de nós aprendeu a experimentar como
recurso supremo e solução para nossa vida.
É muito humilhante
reconhecer que Deus precisa aconchegar seus filhos aos seus braços por
intermédio do sofrimento e da necessidade. Mas, lamentavelmente, é muito comum
as facilidades e o conforto nos levarem a pelo menos uma independência parcial
de Deus. Nossos momentos mais espirituais e os períodos em que Deus esteve mais
perto de nós têm sido aqueles em que poderiam ser nossas estas palavras: “…
conheceste as angústias da minha alma” (Sl
31.7).
Passagens difíceis ensinam-nos a amar. Quando
Deus quer suavizar e refinar nosso espírito e responder às nossas orações por
um batismo de paciência e amor, ele precisa permitir que a disciplina do mau
tratamento, da injustiça e até da ofensa mais severa nos obriguem a ir até ele
buscando o amor que “tudo sofre,” que “tudo suporta”. Com toda a certeza,
descobrimos primeiro que não temos amor adequado para a prova. À medida que o Espírito
Santo nos convence do nosso pecado, ele nos guia até a fonte verdadeira da
força. Então, enquanto aprendemos a lição de humilhação, ele nos guia dia a dia
em provas mais profundas e refinamento mais apurado até que tenhamos condições
de agradecer-lhe pelo fogo que nos trouxe mais da graça do seu Espírito e do
seu amor que tudo vence.
Passagens difíceis
ensinam paciência. Paciência é a graça suprema da vida cristã, e quando sua
obra em nós é aperfeiçoada, nos tornamos “perfeitos e íntegros, em nada
deficientes” (Tg 1.4). Portanto, geralmente a
derradeira e suprema lição da vida espiritual nos é ensinada na escola do
sofrimento.
Passagens difíceis ensinam coragem. Elas
removem o temor do sofrimento, a tristeza da dor, e nos capacitam a nos
revestir da força e coragem do Senhor e a subir acima do poder do medo até
podermos abraçar a luta e permanecer firmes com as marcas do conflito e da
vitória como bons soldados de Cristo.
Passagens Difíceis São para a
Glória de Deus
Passagens difíceis fazem de nós modelos e
lições vivas para ajudar outros e para trazer glória a Deus, mostrando ao mundo
o que Cristo pode fazer pelos seus filhos, e o que a vida de Cristo em nós pode
realizar onde outros falharam. Deus quer que sejamos um espetáculo para os
anjos e para os homens, para mostrar-lhes pelo nosso exemplo que Cristo pode
guardar em qualquer situação, e que o poder de sua graça é prático,
sobrenatural e adaptado a cada vida humana.
Passagens difíceis
nos qualificam para ajudar os outros por meio das lições que aprendemos com
nossa própria experiência. O coração insensível e imaturo é pouco qualificado
para confortar, aconselhar e abençoar um mundo em sofrimento. Deus precisa
forjar primeiro em nós aquilo que precisamos repartir aos nossos semelhantes. A
dolorosa provação de uma experiência real nos qualifica a confortar, fortalecer
e encorajar as almas às quais fomos enviados por Deus, e para quem podemos dizer:
“Eu estive lá, e posso falar da profundeza da minha própria experiência que ‘o
meu Deus, segundo as suas riquezas, suprirá todas as vossas necessidades em
glória, por Cristo Jesus’” (Fp 4.19).
Passagens difíceis tornam Cristo real, tão
real quanto a dificuldade. São as estampas celestiais pelas quais as mensagens
de Deus e suas comunicações de graça e bênção são gravadas em nós e permanecem
em destaque na nossa vida. Primeiro, a imagem é recortada, depois é queimada
dentro do cartão pelo carimbo pesado e pela chama flamejante; só depois de tudo
isso é que se torna o que chamamos de alto relevo, de maneira que todos podem
ver e senti-lo.
Assim, Deus corta e queima suas mensagens em
vidas humanas até que Cristo se torne tão real para nós quanto as lágrimas que
derramamos, os temores que nos faziam estremecer, as tristezas que quase nos
sobrepujavam e as dificuldades que surgiam como montanhas diante de nós – de
tal maneira que as lembranças mais doces da nossa vida são as passagens
difíceis que se tornaram pedras firmes no meio do rio e monumentos de coisas
divinas e celestiais.
Passagens difíceis
obtêm para nós coroas eternas. Tornam-se ocasiões de vitória e galardão. O
soldado de Cristo está ganhando um histórico e uma coroa que nunca
desaparecerão.
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